Darcy Ribeiro e UnB: intelectuais, projeto e missao

Adelia Maria Miglievich-Ribeiro

Resumo


A historia da Universidade de Brasilia (UnB), desde sua concepcao original, lutas por sua implantação e o golpe sofrido em 1964, tendo seu campus invadido por tropas militares, e recordada para somar ao debate sobre os intelectuais públicos brasileiros que, nos anos 1950 e 1960, abracavam um certo projeto de nação que via na educação e na ciencia suas forcas constitutivas. Faco uso da categoria Intelligentsia de Mannheim, que fortalecia o argumento do intelectual engajado no planejamento social com vistas às necessarias mudancas. Darcy Ribeiro e um deles. Mediante ainda as nocoes de “projeto” e “missao”, tento explicar aquela que tambem poderia ser chamada “geração da utopia”, sendo a UnB um dos projetos em curso que nascia dentro de um “campo de possibilidades” abruptamente modificado. Revisitar a missao contida na UnB, atualizando-o em razao de ineditos “campos de possibilidade”, talvez seja uma tarefa necessaria ao debate educacional hoje.


Palavras-chave


Darcy Ribeiro; Intelectuais; Universidade; UnB; Campo de possibilidades

Referências


Darcy fez parte de uma geracao de intelectuais e artistas que acreditava firmemente ser possivel construir um projeto cultural abrangente para o Brasil e para a America Latina. Um projeto destinado a revolucionar as estruturas do pais e do continente, e nao apenas reforma-las (...) era uma geracao de humanistas que queria nada menos que o todo. (...) E mais que isso: era uma gente que bebeu no modernismo antropofagico da Semana de 1922, avida por conhecer e fazer valorizar as raizes mais profundas da nossa formacao hibrida (...). Darcy pertencia a esse tempo (FERRAZ, 2008, p. 10-11)

FERRAZ, I. Grinspum. “Introducao”. In: ______. Darcy Ribeiro. Utopia Brasil. Sao Paulo: Hedra, 2008, p. 9-18.

Um modelo estrutural novo somente se impoe como uma necessidade impostergavel porque as universidades latino-americanas nao sao capazes de crescer e de se aperfeicoar nas condicoes atuais, a partir da estrutura vigente, com os recursos disponiveis. E, principalmente, porque esta estrutura serve mais à perpetuacao do status quo que à sua transformacao. Impoe-se, alem disso, porque os remendos que se estao fazendo nesta estrutura, concretizados atraves de programas induzidos do exterior, ameacam robustecer ainda mais o seu carater retrogrado, aliviando algumas tensoes e atendendo a algumas carencias, precisamente para manter suas caracteristicas essenciais de universidades elitistas e apendiculares (RIBEIRO, 1975b, p. 173)

RIBEIRO, Darcy. A Universidade Necessaria. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1975b.

Inaugurada em 21 de abril de 1962, sob inspiracao de um grupo liderado por Darcy Ribeiro, Anisio Teixeira, Frei Matheus Rocha e contando com a colaboracao de Oscar Niemeyer e Lucio Costa, a Universidade de Brasilia representou, no contexto brasileiro, uma revolucao na vida academica. Em torno dos que conceberam a Universidade, reuniram-se professores comprometidos com as reformas de que o pais necessitava para se modernizar, para se democratizar e para construir uma sociedade melhor, mais justa e mais igualitaria. Era o prototipo da universidade cidada (DIAS, 2013, p. 15).

DIAS, Marco Antonio Rodrigues. UnB e comunicacao nos anos 1970. Acordo tacito, repressao e credibilidade academica. Brasilia: Ed. UnB, 2013.

E a Faculdade de Ciencias Medicas seria estruturada com proposicoes revolucionarias como “formar um profissional indiferenciado, capaz de atender às necessidades basicas de saúde da populacao – promocao, prevencao, recuperacao, reabilitacao – em diferentes niveis de atencao – primaria (domiciliar, postos e centros de saúde), secundaria (hospitais comunitarios), e terciaria (hospitais especializados e maternidades) [...] Uma das principais inovacoes era a de acabar com a fragmentacao do ensino provocada pela existencia de inúmeras disciplinas autossuficientes, que impediam uma visao holistica do ser humano. [...] No ciclo clinico, o aprendizado era realizado sob a forma de treinamento em servico, ou seja, o aluno aprendia fazendo (LISBOA apud. DIAS, 2013, p. 178)

DIAS, Marco Antonio Rodrigues. UnB e comunicacao nos anos 1970. Acordo tacito, repressao e credibilidade academica. Brasilia: Ed. UnB, 2013.

O papel da universidade, para Darcy, indissocia-se da criacao de uma consciencia critica. A universidade e uma instituicao social fundamental, prenhe de ideologias e interesses, portanto, politizada, com a missao de nortear o desenvolvimento autônomo de sua nacao. O postulado do saber cientifico neutro e recusado por Darcy que, nao ingenuamente, sabe que a despolitizacao da universidade e nitidamente sua submissao aos interesses e à logica dominante de distribuicao de poder numa sociedade que nao rompe com sua condicao de atraso e de subdesenvolvimento. A transformacao da sociedade exige a politica – em seu sentido digno. A universidade tem, pois, um papel politico: poder fazer (MIGLIEVICH-RIBEIRO; MATIAS, 2006, p. 202)

MIGLIEVICH-RIBEIRO, A. M. & MATIAS, G. R.. “A universidade necessaria em Darcy Ribeiro: notas sobre um pensamento utopico”. Revista Ciencias Sociais. Unisinos, 42 (3), p. 199-205, setembro/dezembro, 2006.

A America Latina, imersa num regime neocolonial de atualizacao historica, ficou para tras ate cair nas atuais condicoes de dependencia em relacao aos Estados Unidos. Mesmo contando com uma tradicao universitaria propria e secular, deixou-se recolonizar culturalmente pelo modelo frances de universidade e, mesmo este, so logrou implantar mediocremente (RIBEIRO, 1982, p. 90).

RIBEIRO, A Universidade Necessaria. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.

Os principais elementos deflagradores do golpe tinham natureza politica: o medo, a inseguranca e a reacao ao processo de esquerdizacao ou de “comunizacao” supostamente em curso no pais. As representacoes anticomunistas, que foram dominantes nos discursos favoraveis ao golpe, expressavam o temor em relacao aos movimentos sociais no campo (...) à forca crescente dos sindicatos (...) à politizacao dos subalternos das Forcas Armadas e à esquerdizacao dos jovens universitarios. Alem de expressarem o medo difuso despertado pelo aumento da influencia da esquerda, tais representacoes tinham a vantagem de colocar o problema em linguagem compreensivel para a sociedade, ha muito acostumada a ouvir discursos sobre o “perigo vermelho”. Por outro lado, tal linguagem permitia conferir mais gravidade ao quadro politico, inscrevendo a situacao brasileira nos parâmetros da Guerra Fria (MOTTA, 2014, p. 23).

MOTTA, Rodrigo Patto Sa. As universidades e o regime militar. Cultura politica brasileira e a modernizacao autoritaria. Rio de Janeiro: Zahar, 2014.

(...) quando a UnB, assim como todo o pais, foi sacudida pelo movimento militar de 1 de abril de 1964. A 9 de abril, tropas da Policia Militar de Minas Gerais e efetivos do Exercito, sediados em Mato Grosso, ocupando 14 ônibus e trazendo tres ambulâncias de servico medico – nao se sabe ate hoje o porque, mas era esperada uma reacao armada por parte da Universidade! – em uniforme de campanha e portanto equipamento de combate, invadiram o campus universitario. À invasao seguiu-se uma minuciosa batida e revistamento das secretarias da reitoria dos demais departamentos, em particular da Biblioteca Central, cujo predio, inclusive os gabinetes dos professores do Instituto Central de Ciencias Humanas, sediado no primeiro andar, foi interditado por dezesseis dias. Com as tropas, vinha uma lista de professores a serem aprisionados. Doze desses professores, puderam ser encontrados, seja no campus, seja em suas residencias, onde foram chamados pela reitoria e pelos colegas que julgaram melhor que seria os mesmos se apresentarem, ja que nada tinham a ocultar e, assim, poderiam facilmente desfazer equivocos. Nossa surpresa foi, porem, que muitos deles ficaram presos no quartel do batalhao da Guarda Presidencial de treze a dezoito dias (MACHADO NETO, 1969, p. 251).

MACHADO NETO, A. L.. “Apendice 2. A ex-universidade de Brasilia. Significacao e crise”. In: RIBEIRO, Darcy. A Universidade Necessaria. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1969, p. 239-260.

Apesar dessa interferencia vital, as atividades continuaram com o mesmo vigor e a universidade tomou impulso raramente visto em tao pouco tempo em universidades de nosso pais. Todos os setores desenvolviam-se rapidamente, chamando atencao de colegas de outros centros, que nos contavam. Alguns cientistas e artistas do exterior estavam colaborando conosco e outros queriam vir colaborar, e instituicoes estrangeiras auxiliavam-nos substancialmente devido ao prestigio dos responsaveis por projetos (SALMERON, 2012, p. 29).

SALMERON, Roberto A.. A universidade interrompida: Brasilia 1964-1965. Brasilia: EdUnB, 2012.

Essa demissao coletiva, caso único na historia da universidade no mundo, foi espontânea, nao foi programada, nem dirigida do exterior como alguns ridiculamente pretenderam. Por causa da determinacao e da uniao dos docentes, houve quem duvidasse de sua espontaneidade. Por que tal atitude de 223 pessoas? Que fatos levaram a tantos, conscientes e responsaveis, a se convencer de que nao era mais possivel continuar trabalhando nas condicoes que lhes eram impostas? A situacao podia ser resumida numa frase, em termos simples: seria possivel manter a dignidade de cidadaos e de professores construindo uma universidade cujo corpo docente deveria estar sujeito às arbitrariedades de um reitor e de um ministro da Educacao que julgavam normal receber instrucoes do Servico Secreto do Exercito e de outros servicos policiais? O Ministro da Educacao dizendo em entrevistas que educacao e assunto de seguranca nacional? (SALMERON, 2012, p. 31-2)

SALMERON, Roberto A.. A universidade interrompida: Brasilia 1964-1965. Brasilia: EdUnB, 2012.

Falar de universidade, para mim, e voltar a um tema tao familiar que, de tao familiar, torna-se cansativo. Tantas vezes pensei a universidade, tantas vezes repensei a universidade, tantas vezes projetei a universidade, tantas vezes propus a reforma da universidade. Dando um parecer sintetico agora, eu diria: a universidade e o útero na qual a classe dirigente se reproduz, e se reproduz com enorme eficacia; 99% das pessoas que saem da universidade saem com a sua carreira, qualificados socialmente para nao ser povo; e uma maquina de fazer com que as pessoas se convertam em "nao-povo", e saem todos para serem perfeitos guardioes do sistema: para se casar, para se comportar bem (RIBEIRO, 1978, n.p)

RIBEIRO, Darcy. Voz Viva de America Latina. Transcricao e traducao ao portugues da fala de gravada no disco Direccion General de Difusion Cultural, Universidad Nacional Autonoma de Mexico, 1978. Edicao: Jose Domingos de Brito. Transcricao e traducao: Miriam Xavier de Oliveira. Revisao: Gisele Jacon - Fundacao Darcy Ribeiro. Acesso em 10 de abril de 2015: http://www.tirodeletra.com.br/ensaios/VozvivadaAmericaLatina.htm.




DOI: http://dx.doi.org/10.1590/s0104-40362017002500939

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